ENTRADA DA TUMBA DE NEFERHOTEP (FOTO: DIVULGAÇÃO)
O Museu Nacional, cujo prédio e coleção foram devastados por um incêndio no ano passado, planeja levar pesquisadores ao Egito para participar da restauração da tumba de Neferhotep, processo que envolve especialistas da Argentina (coordenadores do projeto), Alemanha e Itália. Porém a viagem brasileira, que aconteceria no próximo mês, foi adiada por “algumas questões burocráticas”, segundo a assessoria de imprensa da entidade.
A arqueóloga argentina Violeta Pereyra, professora catedrática da Universidade de Buenos Aires e líder do projeto de pesquisa sobre a tumba, que teve início em 1999, explica que a equipe brasileira deverá iniciar os trabalhos em janeiro de 2020. Pereyra confirmou os entraves burocráticos no Egito: no último ano, foram feitas mudanças na liberação das permissões de trabalho estrangeiro.
Segundo a arqueóloga, que está no Egito trabalhando na restauração, o projeto já está em fase avançada de recuperação, mas ela ressalta a importância da participação brasileira, sob a liderança do professor Antonio Brancaglion — o acordo com o Museu Nacional foi firmado há cinco anos. “A conservação está a cargo de pesquisadores alemães, que têm a capacidade de preservar e conservar a pintura mural. No entanto, para que o monumento possa ser apresentado ao público, é necessário o trabalho de historiadores e arqueólogos, por isso a ideia de convocar os pesquisadores do Museu Nacional, que contou com a melhor coleção egípcia da América Latina, deu possibilidade de desenvolver investigações bem específicas na arqueologia.”
Afirmações como essa têm grande peso no momento por que passa o Museu Nacional. O fogo de setembro passado destruiu não apenas a múmia da sacerdotisa-cantora Sha-amum-em-su, mas uma coleção de 700 peças funerárias, adquiridas tanto por D. Pedro I quanto D. Pedro II. “Acho que isso afetará a formação das futuras gerações de pesquisadores. Isso não significa que não haja outras possibilidades de trabalhar com a coleção, que está muito bem documentada”, afirma Pereyra.
Segundo a egiptóloga, as academias argentina e brasileira têm produzido grandes avanços no estudo da tumba de Neferhotep, chefe dos escribas do Templo de Karnak, contemporâneo do faraó Tutancâmon, que viveu por volta de 1300 a.C.
ARQUEÓLOGAS VIOLETA PEREYRA E NINA VERBEEK NA TUMBA (FOTO: DIVULGAÇÃO)
Os escribas no Egito Antigo eram responsáveis pelo registro de transações comerciais, atos administrativos e religiosos, tendo uma importância visceral para os faraós. E este nobre liderava o templo de Amon, que reuniu o clero mais poderoso do antigo Egito, representando um deus considerado o rei dos deuses e a força criadora da vida. Ele não era tido apenas chefe dos escribas, era chamado de “Escriba e o Grande”. Ainda foi responsável pela administração da manufatura de tecidos em todo o Egito.
Golpe de Estado
Neferhotep tinha a mais alta posição e viveu em um período de grandes mudanças políticas e religiosas, entre o fim do império de Akhenaton e o início do domínio de Tutancâmon. “Nós estamos seguros — e as investigações estão mostrando — que essa tumba é uma boa fonte de informação para documentar o que ocorreu nesse período”, afirma Pereyra. A tumba está localizada no Vale dos Reis, na Necrópole de Tebas, próxima à margem do rio Nilo, e foi pesquisada pela primeira vez por Norman de Garis Davies, que publicou um estudo em 1933.
Influenciado pelo Deus Sol (Re-Harakti), o faraó Amehotep IV deixou Tebas, a sede do poderoso Templo de Amon (Karnak). Criou uma cidade em Amarna que se chamaria Akhetaton e aboliu os mais de 2 mil deuses do Antigo Egito para existir apenas Aton (o disco solar). Ele próprio mudou seu nome para Akhenaton, “aquele que é favorável a Aton”. Poeta e dedicado às artes, Akhenaton relevou o papel do exército, perdendo territórios e enfurecendo os sacerdotes pela sua mudança religiosa. Essa decisão retirou os poderes da casa de Amon. “Foi o mais próximo [na antiguidade egípcia] que se chegou ao monoteísmo”, diz o egiptólogo Júlio Gralha, professor de História Antiga da Universidade Federal Fluminense (UFF).
José Roberto Pellini, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que Akhenaton instituiu o culto ao “disco solar” como uma forma de reduzir o poder do clero de Amon, que ficara extremamente poderoso após a expansão do império conduzido pelo faraó Tutmósis III. “Foi uma reforma com fundo político e econômico, porque após a sua morte houve a restituição de todos os deuses. Quando ele muda a religião, quem segue o novo culto ao deus Aton, deus único, é a nobreza e família real.”
Segundo Pereyra, “Akhenaton fez uma mudança na ideologia para tornar o poder mais autocrático e reduzir o poder da elite tebana. Nessa perspectiva, estaríamos praticamente frente a um golpe de Estado, que é a culminação de um longo processo durante a 18ª dinastia”.
E a tumba de Neferhotep ganha grande relevância nesse processo, uma vez que sua família foi opositora à reforma promovida por Akhenaton. Algumas dessas transições de governo estão impressas nas paredes dessa tumba.
Segundo o pesquisador Rennan Lemos, que participou de escavações da tumba e continua colaborando com as pesquisas de Pereyra, a sepultura de Neferhotep dá acesso a outras cinco. “A tumba é a principal de um complexo funerário. Há fragmentos de caixões, existem amuletos, múmias e partes de múmias e material das reocupações.”
Lemos diz que houve ali influência de ocupações da população árabe local, e as tumbas eram usadas como casa ou celeiro, onde eram feitas muitas fogueiras. A fumaça enegreceu muitas das imagens e hieróglifos nas paredes, cenas que pouco a pouco estão sendo reveladas pelo uso de laser na redefinição de traços dos desenhos nas paredes. Com a ajuda do Museu Nacional, em breve a documentação completa dessas imagens e hieróglifos poderá contribuir para abrir a tumba para visitação de turistas o mais breve possível.
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