Edição
1 648 -10/5/2000
"O escritor francês, autor da série
de romances
Ramsés, diz que o mundo contemporâneo
deve muito ao Antigo Egito
Carlos Graieb
Desde o final de 1998, a lista de livros mais vendidos
de VEJA, principal referência tanto para leitores
como para editores brasileiros, hospeda as obras do francês
Christian Jacq. Autor de romances ambientados no Antigo
Egito, berço de uma das civilizações
mais fascinantes da História humana, Jacq fala de
faraós e princesas do Nilo com a autoridade de estudioso
do assunto. Ele é capaz de ler hieróglifos
como quem lê o jornal na mesa do café da manhã.
O escritor apaixonou-se pelo Egito no início da adolescência
e visita o Cairo diversas vezes por ano, onde é recebido
de maneira calorosa pelos arqueólogos lá baseados.
"É nas velhas tumbas, entre pinturas e inscrições
milenares, que me sinto em casa", costuma dizer. Em seus
livros, Jacq mistura conhecimento histórico com aventura
e fantasia. Sua fórmula vem alcançando um
sucesso extraordinário. Em 25 países, os cinco
volumes da série Ramsés venderam mais
de 5 milhões de exemplares – 250.000
dos quais só no Brasil. Jacq acaba de lançar
uma nova saga, A Pedra da Luz, que já ocupa
o primeiro lugar na lista de mais vendidos de VEJA. Serão
quatro romances no total. Nesta entrevista, ele fala sobre
múmias, arqueologia e o futuro das pirâmides.
Veja – Como o senhor explica essa mania
atual pelas coisas do Antigo Egito?
Jacq – A "egiptomania", como dizem
os franceses, não tem nada de recente. Ela foi e
voltou várias vezes ao longo dos últimos 500
anos. Nos séculos XIV e XV, o enigma dos hieróglifos
ocupou diversas mentes brilhantes. Na época dos grandes
impérios europeus, o Antigo Egito exerceu um fascínio
especial sobre os poderosos – Napoleão, por
exemplo, era um apaixonado pelas pirâmides. Quanto
ao século XX, acho que um momento foi importante
para atrair o interesse das pessoas: a descoberta da tumba
de Tutancâmon, com seu tesouro maravilhoso. Esse evento
ganhou as páginas dos jornais e criou uma mística
que parece inesgotável. E ela tem razão de
ser – afinal de contas, estamos falando de uma das
maiores civilizações da História universal.
O Antigo Egito foi um dos berços da medicina, da
literatura e das artes. Lá nasceram valores e idéias
que ainda permanecem vivos.
Veja – Quais?
Jacq – Pense na tolerância. Os egípcios
jamais promoveram perseguições religiosas.
Entre eles não havia absolutismo moral. Foi no Egito,
ainda, que nasceu a idéia de espírito. Mais:
de que matéria e espírito deveriam viver em
harmonia. A sociedade egípcia almejava a felicidade
terrena e acreditava que todos os seus estratos tinham direito
a ela. Alguns fundamentos do cristianismo podem ser considerados
adaptações da antiga religião egípcia.
O mais visível é o próprio conceito
de eternidade – de que a vida terrena não é
mais do que uma passagem para uma dimensão maior.
A idéia do Cristo-Rei, por oposição
ao Cristo sofredor e torturado, também tem raízes
egípcias.
Veja – E quanto à tradição
literária?
Jacq – O Egito nos legou um grande número
de textos verdadeiramente artísticos, que são
objeto de estudo dos egiptólogos. Para começar,
temos as inscrições nas pirâmides e
monumentos. Eu não hesitaria em compará-las
às maiores epopéias da Antiguidade, como a
Ilíada ou a Odisséia, ou até
mesmo a obras mais tardias, como a Divina Comédia,
de Dante. Elas relatam verdadeiras viagens do espírito
humano. Além disso, existe um extenso corpo de poesias
líricas e de narrativas de aventuras. Há ainda
relatos históricos, como o da Batalha de Kadesh,
que serviu de base para um de meus romances, e livros de
sabedoria, dos quais traduzi alguns, cheios de conselhos
e máximas. Estes últimos seriam equivalentes
aos manuais de auto-ajuda de hoje em dia.
Veja – No cinema, principalmente, as múmias
foram transformadas em monstros. O que o senhor tem a dizer
sobre isso?
Jacq – As pobres múmias já causaram
todo tipo de impacto sobre o imaginário ocidental.
No século XIX, havia uma crença absurda de
que o pó das múmias tinha poderes afrodisíacos.
Por causa disso, inúmeras tumbas foram violadas e
seus conteúdos destruídos. A transformação
das múmias em monstros é, em boa parte, culpa
de exploradores desleixados, que as manuseavam e transportavam
sem tomar os cuidados necessários. Dessa forma, muitas
assumiram de fato um aspecto horrendo. Mas basta olhar uma
múmia bem conservada para mudar de idéia.
Uma das mais famosas é a de Seti I, o pai de Ramsés.
Diante dela, você ainda pode sentir todo o poder e
a sabedoria daquele homem. Devemos lembrar, também,
que as múmias eram símbolos de vida, e não
de morte. Os egípcios as produziam para evitar que
a essência humana se dispersasse no vácuo.
Nos últimos tempos, as múmias voltaram a ser
admiradas. Recentemente, uma sala especial dedicada a elas
foi inaugurada no Museu do Cairo. Exige-se dos visitantes
que eles observem um silêncio respeitoso, e as pessoas
realmente ficam quietas, pois a visão é impressionante.
Quanto à famosa maldição de Tutancâmon,
creio que não há muito mais a dizer. Alguns
dos primeiros exploradores da tumba morreram por inspirar
um fungo que crescia nas suas paredes. As outras mortes
atribuídas à maldição são
bobagem. Fiquem tranqüilos, leitores, as múmias
não lhes desejam mal.
Veja – Seus livros são marcados pelo
misticismo. O senhor é místico?
Jacq – Não, não sou místico.
Como autor, tento mostrar como os egípcios viviam
a sua própria realidade. Era uma civilização
em que os espíritos e a magia pontuavam vários
aspectos do cotidiano. Um ponto curioso e pouco divulgado
é que os egípcios acreditavam na existência
de um Deus único. Ele, no entanto, se manifestava
por meio de divindades menores, ligadas aos elementos –
a água, o fogo, o ar e a terra.
Veja – Há muitas informações
a respeito da sexualidade dos antigos egípcios?
Jacq – A base da família egípcia
era o casal. Dois ou três filhos eram bem-vindos,
mas a falta de descendentes não representava uma
tragédia. Um fato particularmente interessante é
que as mulheres egípcias dispunham de diversos métodos
contraceptivos. Ou seja, a mulher era livre em suas escolhas.
Os egípcios, aliás, nutriam um grande amor
pelas mulheres. Não é difícil saber
o porquê: elas eram muito bonitas, como mostram as
imagens que sobreviveram. Por falar em imagens, existem
papiros com ilustrações de posições
eróticas, os quais constituem uma espécie
de Kama Sutra.
Veja – Na Antiga Grécia, a homossexualidade
ocupava um lugar de destaque. E no Egito?
Jacq – Há referências
à homossexualidade em certos textos, mas aparentemente
os egípcios não a apreciavam muito. Algumas
fontes de mandamentos morais, inclusive, mencionam a rejeição
à homossexualidade. Os egípcios eram um povo
tolerante, mas não davam a essa prática a
mesma importância social que os gregos.
Veja – Qual a idéia mais errada
que as pessoas fazem em relação ao Antigo
Egito?
Jacq – A de que as pirâmides foram
construídas por escravos, que passavam por terríveis
privações, eram chicoteados e tudo o mais.
Todos os egiptólogos já refutaram essa idéia,
mas ela ainda persiste nos filmes e no imaginário
popular. Jamais houve escravidão no Egito. Todos
os que trabalharam na construção dos monumentos
recebiam salário – embora, como hoje, houvesse
diferenças marcantes entre os salários dos
diversos tipos de operários. Um segundo erro é
o de que o faraó seria uma espécie de tirano,
cercado de servas e concubinas. Pois bem: eu não
desejaria a ninguém o cotidiano de um faraó,
que era ainda mais pesado do que o de um chefe de Estado
atual. Para começar, ele precisava acordar antes
do amanhecer e fazer suas orações no templo.
Em seguida, tinha de cumprir uma longa agenda de reuniões
com ministros, com emissários de outros países
etc. Além disso, o faraó não era um
monarca absolutista. O regime egípcio estava muito
mais próximo da monarquia constitucional. O rei devia
respeitar uma série de normas, fundadas sobre as
idéias de retidão e justiça e sobre
a necessidade de alimentar toda a população.
Os textos dizem literalmente que o faraó estava sujeito
a essas leis primárias.
Veja – Ramsés, herói de
seus livros, seria um bom governante nos dias de hoje?
Jacq – Creio que sim. Na época,
a região compreendia povos com interesses conflitantes,
como palestinos, hititas, sírios etc. Ramsés
conseguiu promover a paz entre eles. Até hoje podemos
ver o tratado que sela essa paz, escrito em hieróglifos
nos muros de Karnak. É um texto de inacreditável
modernidade.
Veja – A idéia do arqueólogo
como uma espécie de Indiana Jones faz algum sentido
atualmente?
Jacq – Não. O arqueólogo
como aventureiro pertence mais ao século XIX. Hoje,
a grande aventura para a arqueologia está na exploração
dos métodos científicos, que vão desde
a biologia molecular até o uso de satélites
para o mapeamento de sítios.
Veja – Cientistas descobriram traços
de tabaco e cocaína nos tecidos de uma múmia.
Como isso é possível se ambos os produtos
são originários da América?
Jacq – Bem, há quem diga que existia
uma rota de comércio entre o Antigo Egito e a América.
Além das amostras de tabaco e cocaína nas
múmias, os defensores dessa tese apontam como evidência
o fato de os astecas também terem construído
pirâmides. Conheço muito pouco as civilizações
da América do Sul para dar uma opinião séria
a respeito desse ponto, mas acho que é preciso manter
o espírito aberto. Eis aí uma bela questão
para os jovens arqueólogos. Não acho que seja
absurda a idéia de que os egípcios possam
ter realizado viagens transoceânicas.
Veja – Países como a Grécia reclamam
a devolução de objetos que foram retirados
de seus sítios arqueológicos e levados para
museus da Inglaterra e da França. O senhor acha justo
esse tipo de reivindicação?
Jacq – Minha visão é pragmática.
Durante muito tempo, o governo egípcio não
mostrou a menor preocupação em preservar seu
acervo arqueológico. Ninguém roubou o obelisco
que enfeita a Praça da Concórdia, em Paris.
Ele simplesmente foi vendido à França. Há
também templos inteiros que foram doados a determinados
países europeus por razões políticas.
Será que deveríamos devolver tudo? No plano
moral, sim. No plano prático, acho que não
podemos ter ilusões. Os objetos que preenchem as
prateleiras do Louvre, do Museu Britânico ou do Museu
de Turim dificilmente voltarão ao Egito. Para mim,
a solução ideal está na reconstituição
dos monumentos mais importantes. Dou-lhe um exemplo: ao
lado da pirâmide de Saqqara, existe um santuário
onde foi colocada uma imitação perfeita da
estátua original do faraó. Ficou ótimo.
Há muitos sítios que poderiam passar por reformas
semelhantes, sem que para tanto fosse necessário
gastar quantias absurdas de dinheiro.
Veja – O que falta descobrir no Egito?
Jacq – Segundo as estimativas mais recentes, descobrimos
somente 20% ou 30% de tudo o que existe sob as areias do
Egito. Mesmo no caso dos sítios mais conhecidos,
como o de Gizé ou o de Saqqara, há várias
áreas que permanecem intocadas. Uma das descobertas
que ainda precisam ser feitas é a do túmulo
de Imhotep. Ele era arquiteto, médico, astrônomo
e escritor. Foi um dos grandes espíritos da História
da humanidade. O local da tumba é um mistério
para os arqueólogos, mas já foi visitado por
ladrões. Existem vários objetos com o nome
de Imhotep, de autenticidade comprovada, que já foram
vendidos por antiquários.
Veja – As pirâmides sobreviverão
por mais quarenta séculos?
Jacq – Sou pessimista. Há inúmeros
problemas, e não sabemos como solucioná-los.
Para começar, a Barragem de Assuã mudou o
clima do Egito. Hoje, chove muito mais do que na Antiguidade
e as pedras são sensíveis à umidade.
Existe ainda a questão demográfica. A população
do Egito aumenta à razão de 1 milhão
de habitantes por ano e, com ela, crescem as cidades. Casas
e prédios foram construídos às margens
do platô das pirâmides. Por fim, existe o grave
problema da poluição. Se não surgirem
novas técnicas de preservação, acho
difícil que esses monumentos durem outros 4.000
anos."
Retirado na íntegra de: http://veja.abril.com.br/100500/entrevista.html